COVID-19: APS
Temas: APS
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Segundo o Ministério da Saúde, "Consultório na Rua" é considerada uma estratégia, cujo principal objetivo é ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, instaurada na PNAB de 2011. São equipes multiprofissionais e, em geral, trabalham em parceria com unidades básicas de saúde na APS. Dentro do grupo dos entrevistados, uma das enfermeiras atuava na AP 5.1, na zona oeste do Rio de Janeiro, em uma equipe do CnaR e como responsável técnica de enfermagem da clínica da família base deste CnaR. Durante a pandemia de Covid-19, as equipes de saúde enfrentaram desafios significativos ao orientar e cuidar da população em situação de rua, que é uma população altamente vulnerável. As pessoas em situação de rua costumavam se aglomerar, tornando difícil a implementação de medidas de distanciamento social. Esses indivíduos, muitas vezes organizados em pequenos grupos, ficaram mais dispersos em sua região e enfrentaram um aumento nas dificuldades, especialmente relacionadas à falta de acesso a alimentos. O período de lockdown reduziu as oportunidades de trabalhos informais. Somado a isso, o aumento do desemprego contribuiu para situações de despejo e famílias inteiras indo para a rua.
"Orientar esse tipo de população que fica na rua, com o COVID, foi muito louco, porque eles ficam grudados um no outro. E aí tiveram várias situações. O que chamou mais a atenção da gente aqui, a nossa gerente até fez o mestrado dela em cima disso, foi que a gente tinha muitos pacientes que conseguem comida, essas coisas, na rua. Quando a gente foi pra rua pra orientar eles contra o COVID, contra essas coisas, teve o lockdown, que ficou um mês e pouco. Aqui, eles ficam muito tempo... eles ficam espalhados, eles fazem grupos pequenos de 5, 10 pessoas, mas eles não fazem igual uma cracolândia como a que tem no Acari, ou quando a gente vê ali na Avenida Brasil, não é assim que fica pra cá, eles ficam bem espalhados. A gente tem só em Senador Camará, sei lá, aí tem uma concentração de 50 pessoas na linha do trem, mas fora do hospital a gente não tem um grupo assim. E aí, quando a gente foi pra rua, a queixa deles não era nem disso. A primeira coisa foi que eles começaram a procurar a gente aqui na clínica, que é muito afastado de onde eles fazem o uso da droga e tudo mais. Mas eles sabiam onde a gente fica, então eles vieram procurar, muita gente com demandas clínicas que eles nunca pedem. Procurando por saúde, porque estavam com medo de eles terem uma hipertensão, uma diabetes, não sei o quê e poder piorar. Então, eles procuraram a gente, que isso era muito incomum, naquela época. E o fato deles não conseguirem comida, porque as igrejas, as ONGs, todos os tipos de religiões que davam, a gente, que fornecia um lanche pra eles, a gente perdeu esse lanche na época da COVID. Então assim, várias coisas que eles comiam, e outras, eles não podiam trabalhar, fazer bico, que eles trabalhavam, aqui eles trabalham muito de flanelinha de estacionamento. E aí tava todo mundo dentro de casa, as lojas fechadas, tudo fechado, eles não estavam comendo, eles não conseguiam nem dinheiro pra comer. Então a queixa deles quando a gente foi, foi comida, assim, que é um negócio muito diferente. Então isso marcou muito a equipe do Consultório na Rua, que foi pra além" (ENF Luciana).
"A gente não teve muitos casos de COVID com a população de rua. A gente chegou uma época a receber uma quantidade para a gente testar assim livre, independente de estar assim assintomático, e a gente não teve tantos casos positivos, mas a gente teve essas questões mais vulneráveis, já são vulneráveis, então isso ficou pior, sabe? Com a COVID, as pessoas não queriam, a gente, todo mundo ficou com medo, não queria se aproximar de ninguém, então não tinha nem, quanto mais para a população em situação de rua. Quem dava comida não dava mais, quem oferecia uma água para eles não dava mais, então eles ficaram realmente pedindo para ir para o abrigamento, que eles normalmente não pedem tanto. Então, é isso, marcou muito para a gente, como equipe" (ENF Luciana).
A pandemia gerou medo, levando alguns a procurar serviços de saúde que antes evitavam, preocupados com condições de saúde que poderiam agravar os sintomas da Covid-19. Esta mudança de comportamento chamou a atenção da equipe do CnaR. Apesar das dificuldades vivenciadas, a profissional narra algumas estratégias utilizadas pela equipe no período, como tornar a unidade ponto de referência, a oferta de água e do espaço disponível.
"Mudou todo o nosso cenário de 2020 para cá, a quantidade de pessoas eu acho que triplicou na rua, depois do COVID. E tanto que aqui a gente tá querendo montar um outro consultório, porque a população tá tão grande, a gente não tá dando conta mesmo. A gente dava conta, e aí depois do COVID, tudo mudou. E alguns pacientes que são mais antigos, muitos pacientes são antigos, que vieram, começaram a procurar a gente, e eles têm demandado muito aqui na clínica. Eles vêm, porque como é perto da linha do trem, eles conseguem pegar o trem e vêm. Então eles têm vindo muito procurar gente, que é uma coisa que a gente até faz reunião toda hora e fala, “cara, depois do COVID, como os pacientes têm vindo!” Então a gente tá tendo um grande número de população de rua vindo procurar a gente aqui mesmo, na Unidade. Então a gente não pode nunca deixar a unidade sem um profissional nosso, porque eles vêm direto, já sabem onde é a sala. Então a gente vai meio que se ajustando assim. Então isso foi depois do COVID. Porque eu tinha que implorar pra eles virem pra cá antes" (ENF Luciana).
"Tinha uma família inteira, assim, no auge do COVID também, não sei se foi março ou abril ou maio, mas foi bem nesses primeiros meses, tinha uma família toda assim, uma mãe com marido e duas crianças pequenas, que eles montaram uma barraca igual a uma casa e a gente ficou muito assustada, porque a gente não conhecia eles, fomos até eles e aí eles falaram, "não, gente, eu perdi, eu trabalhava informal, não posso mais trabalhar informal", acho que ele vendia coisas, não sei o quê, e aí ele foi pra rua porque ele perdeu o aluguel" (ENF Luciana).
"A gente deixa, "tô cansado, não tô aguentando, posso ficar deitado um pouco?" A gente deixa, que às vezes eles querem por causa do calor, aí querem ficar um pouco, entendeu? A gente começou a dar água pra eles congelada. A gente tanto leva pra rua quanto tem gente que vem aqui buscar, então a gente usa a geladeira, gela um pouco pra eles, com garrafa que a gente recicla mesmo, pra dar pra eles, porque por causa desse calor que tá fazendo. E por doença mesmo, eu tenho percebido que eles têm procurado muita gente por questão clínica, por estar doente, ou por fazer exames de rotina, que pra eles não são comuns, mas eles têm procurado. Mas é o vínculo também, muitos anos, nove anos, já que tem o consultório na rua na clínica da família. E aqui eles têm muito vínculo com a equipe" (ENF Luciana).
A experiência relatada por esta enfermeira ilustra a complexidade de atender à população em situação de rua durante uma pandemia e a necessidade de respostas flexíveis e compassivas. A manutenção de serviços de saúde acessíveis e a adaptação das estratégias de apoio são fundamentais para mitigar o impacto das crises em populações vulneráveis, destacando a importância da APS na resposta a emergências de saúde pública.
"Eu não sei se eles viram que não fecharam a porta, não sei se teve muita porta fechada no COVID, por medo mesmo dos profissionais, das pessoas, que aqui eles vieram e a gente falou, “não, fica aí", é sempre assim, "bota a máscara, fica, só bota a máscara", e aí, entende? A gente não restringe o acesso deles aqui, eles ficam, às vezes não tem que fazer nada, querem sentar e ficar um pouco" (ENF Luciana).