Escolhendo a vacina (sommelier de vacinas)

Temas: APS

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Durante a campanha de imunização contra a covid-19 surgiu um movimento até então inédito por parte da população de escolha da vacina a partir do laboratório fabricante. A esse movimento foi dada a alcunha “sommelier de vacinas”, ou seja, especialista em vacina, em alusão ao profissional que atua na escolha de bebidas alcoólicas. O uso desse sentido emergiu para realizar uma crítica a essas pessoas, uma vez que, em meio a uma pandemia com centenas de milhares de óbitos, não era pertinente escolher a marca do imunizante na iminência de contágio. O efeito de sentido construído é chamar a atenção dos indivíduos para algo que eles não têm competência. No Rio de Janeiro, ao longo de toda a campanha, foram utilizadas as vacinas CoronaVac, AstraZeneca, Janssen e Pfizer.

A recusa a determinadas vacinas criou desafios adicionais para os profissionais de saúde, que precisaram lidar com a hesitação e desinformação. Uma ACS da AP 2.1 descreve que a sua impressão era de que a escolha das vacinas pelos pacientes se assemelhava a uma feira, onde as pessoas escolhem suas frutas e verduras. Muitos usuários desenvolveram uma preferência pela vacina Pfizer, rejeitando outras opções como a AstraZeneca e a Coronavac, conforme relatado por uma enfermeira da AP 2.2, em 2021. Esse comportamento levou a uma variação no fluxo de pessoas nos postos de vacinação, com alguns dias sendo mais movimentados, dependendo da vacina disponível: “começou a PFIZER, e aí as pessoas agora querem tomar PFIZER. Elas querem escolher, então a PFIZER tinha acabado, então pessoal não tava indo. Aí a PFIZER voltou hoje, aí o pessoal tá descobrindo ainda que chegou e tá voltando o fluxo” (ENF Caroline Teixeira). Essa preferência exigiu uma gestão cuidadosa dos estoques e da logística para minimizar os impactos negativos.

Todos os dias. Sei lá. De 100 pessoas, 90% das pessoas queriam escolher. “Eu quero tomar Pfizer”. “Eu quero tomar a Janssen”. E não era. Era a que tinha no momento. E a gente sentia uma certa recusa de vacina. Eles iam mesmo... Hoje tem qual? Era tipo feira. “Hoje eu quero tomar tal”. E a gente: “não, a que tem é essa”. E a gente tentava conversar, convencer a pessoa a tomar. Enfim, umas a gente conseguia, outras não (ACS Raquel).

Tanto no Píndaro, como no Planetário, no Jockey, aqui... Nos polos que a gente ficava, sempre tinha uma pessoa querendo escolher a vacina. E até hoje, com a quinta dose. A gente tá com a quinta dose, que é a Pfizer. Mas eles perguntam: “qual é a vacina? Eu não quero tomar AstraZeneca. Eu não quero tomar não sei o que." Não, é a Pfizer. Eu não sei o que que eles se apegaram pela Pfizer, a querida deles é a Pfizer (ACS Raquel).

Um ACS da AP 3.3 notou que as preferências por determinadas vacinas variavam com o status socioeconômico, com pessoas de classes mais altas frequentemente preferindo a Pfizer e rejeitando a Coronavac. Essa tendência refletia a influência de percepções de qualidade associadas a diferentes vacinas.

[...] teve gente que falou assim, "ah, eu quero tomar essa vacina, não quero tomar essa". Às vezes, tipo assim, ah, nesse dia que tem Pfizer, aí lotava. Aí nesse dia que tem Coronavac, aí já diminuía, entendeu? Tinha gente que escolhia, tinha gente que não ligava. [...] A gente tá aqui pra salvar a vida de todo mundo, o máximo que a gente puder. A vacina tá aí, mas tinha gente que escolhia. [...] a galera de classe média alta, "ah, eu só quero Pfizer". Entendeu? A galera um pouco mais remunerada, pô, não, "ah, tem Coronavac, então não quero não". Ia embora mesmo, realmente embora. Você vê que a galera chegava de carro, saia de carro e falava assim (ACS Everson).

A desconfiança em relação a algumas vacinas foi alimentada por mitos e fake news, como observado por dois enfermeiros da AP 2.2. A mídia e informações incorretas exacerbaram o medo de vacinas como a AstraZeneca. Este ceticismo dificultou a campanha de vacinação, exigindo um esforço constante de comunicação e educação por parte dos profissionais de saúde. Inicialmente, a Coronavac foi bem aceita, mas à medida que outras vacinas foram introduzidas, como a AstraZeneca e a Pfizer, houve uma mudança nas preferências. 

“Ah, porque não quero fazer com a Astrazeneca porque a Astrazeneca dá muita reação”. E a gente já explica “Senhora, qualquer vacina pode dar reação, qualquer vacina pode causar reação. O importante é a senhora se vacinar e estar imunizada”. Então, isso lá no início foi muito “Ah aquela vacina é experimental”, “Ah aquela vacina não funciona”, a gente teve muito disso também (ENF Leônidas).

Eu acho que isso era o mais louco. No momento que a gente só tinha vacina como a esperança e as pessoas ainda queriam selecionar qual vacina, porque era isso. No início, a gente tinha Coronavac, então as pessoas aceitavam a Coronavac muito tranquilamente, mas quando a gente começou com AstraZeneca, a gente teve uma resistência muito grande, por todo um boato da Astrazeneca causar trombose e porque não sei quem morreu por causa da AstraZeneca. E a gente sabe também que tem uma modificação muito grande da mídia em relação a isso tudo. Então as pessoas, assim: a AstraZeneca era uma que a maioria não queria tomar. Elas queriam na verdade, Pfizer (ENF Bruna Saldanha).

No geral, a maior parcela das pessoas aceitava a vacina disponível, mas havia um percentual significativo que tentava escolher a vacina específica. Um MFC da AP 3.3 mencionou que muitos pacientes tinham preocupações com efeitos trrombose associado à AstraZeneca. Os profissionais de saúde frequentemente precisavam usar de suas técnicas de comunicação e tranquilizar os pacientes sobre a segurança das vacinas, o que foi crucial para aumentar a aceitação. Foi necessário um enorme esforço para combater a desinformação e, assim, garantir que o maior número possível de pessoas fosse vacinado.

A maioria das pessoas tomam a vacina. A gente brincava assim, a pessoa perguntava “qual é a vacina?” a gente respondia “do coronavirus”. Aí as pessoas, na maioria das vezes, eram... aceitavam a vacina que tinha, mas de fato tem alguns pacientes que fazem essa escolha, que querem na determinada dose e tal, então tinha isso, Aí a gente tentava orientar. Alguns não aceitavam, vinham com algumas falas da questão da trombose, da AstraZeneca, da questão da reação, sempre teve alguma questão, sempre teve assim, a gente vivenciou isso “ah, a Coronavac é muito fraca”. Tem alguns mitos que vem sendo trazidos para essa situação da vacina e a gente vai tentando dialogar. Mas isso não é a maioria dos casos. Isso é uma parte das pessoas, mas a maior parte se vacina e nem sabe qual é. (MFC Marcio).

A vacina Janssen, por ser de dose única, foi rapidamente esgotada devido à alta demanda, conforme a fala de uma enfermeira da AP 2.2. A conveniência de uma dose única atraiu muitos, demonstrando como a logística da vacinação influenciou as escolhas dos pacientes.

Uma que eu vi que o povo aderiu mesmo, quando a gente teve mas foi no início, foi um período bem curtinho que a gente recebeu, foi a Janssen. Pessoal quis bastante porque era uma dose única, então não tinha que retornar para tomar uma segunda dose. Tanto que ela durou muito pouco, quando a gente recebeu, eu acho que no primeiro ou segundo dia já tinha acabado meio que o estoque. Mas eu acho que uma grande resistência mesmo foi AstraZeneca por causa da história da trombose (ENF Bruna Saldanha).

Orientações incorretas de alguns médicos influenciaram as escolhas dos pacientes, dificultando a tarefa dos profissionais de saúde nas unidades da APS carioca. A desinformação médica sobre contraindicações inexistentes complicava ainda mais a aceitação das vacinas disponíveis. Inicialmente, a campanha de vacinação enfrentou restrições quanto à intercambialidade das vacinas, o que complicou a gestão dos estoques e a administração das doses. Conforme o avançar da campanha, as orientações foram sendo atualizadas e a flexibilização das diretrizes com a possibilidade de intercambialidade impactou positivamente aos profissionais dos pontos de vacinação, reduzindo conflitos e simplificando o processo de imunização. 

Teve, sim, com certeza, porque a população coloca algumas questões de contra indicação que na verdade não existem. E aí vem um médico do serviço particular ou mesmo do serviço… não estou falando de médico de serviço particular, mas de qualquer médico ou qualquer pessoa que orienta o determinado usuário a fazer só com a vacina x, y ou z e aí para a gente desconstruir isso quando o usuário chega lá com a gente é extremamente difícil. Mas hoje [MARÇO 2022] já está mais fácil, porque hoje já está liberado, eles liberaram a intercambialidade com qualquer um dos imunizantes, então fica mais fácil. Só no momento agora, agora que não está tendo a Pfizer. Está mais restrito, só por isso, mas as outras todas, agora tudo bem. Mas na época como tinha… o que acontecia muito, lá antes, como a gente está falando, só tinha, por exemplo, a Coronavac e Astrazeneca, aí por uma questão de estoque orienta fazer a primeira dose com a Astrazeneca. Então, hoje a primeira dose é da Astrazeneca. Por que? Para deixar a Coronavac para quem está precisando tomar a segunda dose e vice-versa. Isso alternava às vezes de um mês para o outro, de acordo com o estoque, entendeu? Então, isso dava muito conflito também, porque às vezes a pessoa chegava e falava “Ah não, mas eu queria com a Coronavac”, “Ah não, mas eu quero com a Astrazeneca”. Hoje, a gente já tem uma questão, uma ordem direta da DVS que diz assim “não burocratizar”. Então, isso é ótimo, maravilhoso, perfeito, então a gente não burocratiza, a pessoa pode se vacinar e até fazer a troca com que ela quiser, só que antes, lá no início da vacinação, não tinha isso. Então, a gente tinha que orientar que hoje para Coronavac não pode porque a gente está deixando para segunda dose. Aí nem sempre a população entendia de bom grado (ENF Leônidas).

A magnitude da campanha expôs os profissionais da APS a situações adversas, inclusive, em que usuários tentaram corromper o processo de vacinação. Alguns indivíduos tentaram fraudar o sistema de vacinação, oferecendo dinheiro para obter certificados de vacinação sem realmente receber a dose, conforme relatado por um enfermeiro da AP 2.2 que também atua como responsável técnico do CMS onde está lotado. Esse comportamento antiético ressaltou a necessidade de vigilância e integridade no processo de vacinação.

[...] teve caso da pessoa, que passava na escriba, que a gente chama antes, fazia o comprovante ali, depois ia do lado para se vacinar, isso colado, estou falando de 2 metros de distância, e a pessoa querer fugir da fila com o comprovante pronto para poder dizer que se vacinou. Tive casos desses. Tive caso de pessoas que ofereceram dinheiro para técnica de enfermagem para não aplicar a vacina, fingir que aplicou para ele poder levar só o comprovante dizendo que se vacinou, sendo que não tomou a vacina de verdade (ENF Leônidas).

A insistência dos pacientes em escolher a vacina criou caos e bloqueios nas filas de vacinação, comprometendo o fluxo dos locais. Uma enfermeira da AP 2.1 relatou que a recusa em tomar a Coronavac, em particular, levou a esperas e desperdício de tempo, complicando a logística e a eficiência da campanha de vacinação.

Tinha gente que ficava bloqueando a fila porque queria saber qual era a próxima vacina. Ficava escolhendo, criava um caos. Eu vou abrir a caixa e vou saber qual que é. Porque senão... aí ninguém queria aquela vacina e ia esperar a próxima, principalmente quando era Coronavac. As pessoas tinham muita recusa contra Coronavac. Aí mesmo que tinha povo esperando para outra fila, só que o imunizante era bem reduzido no início, não dava para ficar desperdiçando vacina (ENF Bruna Campos).