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No Brasil, a pandemia Covid-19 foi marcada não somente pelas questões sanitárias envolvidas, mas pela acentuação de um movimento observado no período eleitoral de 2018 marcado pelas chamadas fake news, expressão em inglês que significa “notícias falsas”. Além disso, não é possível contar a história da pandemia no país e na capital fluminense sem mencionar o contexto político nacional, estadual e municipal respectivamente como descrito no capítulo sobre o caso do Rio de Janeiro.
A pandemia atingiu a sociedade já fragilizada por anos de gestão ineficaz na área da saúde, resultando em uma crise multifacetada. A falta de valorização da APS, a desorganização administrativa, e a disseminação de informações falsas agravaram ainda mais os efeitos deste momento histórico. Os profissionais de saúde narram registros importantes do período pré-pandêmico, quando houve mudanças significativas na rede municipal de saúde carioca, principalmente na APS, que foi marcada por greve por três anos consecutivos (entre 2017 e 2019), desvalorização dos profissionais e desestruturação dos serviços. Resultado: restrição de acesso e uma enorme demanda reprimida.
"Quem viveu quatro anos de uma gestão de atenção primária com pouca valorização, com greves e as pessoas passaram a desconfiar mais do serviço, de ter uma restrição de acesso e uma demanda reprimida. Eu tinha falado que a gente trocou de contrato de gestão ainda no ano passado, na gestão anterior, e isso não foi melhorado e ainda veio a pandemia. Então, a gente já tinha uma demanda reprimida pelos processos de greve que a gente passou, de desestruturação da atenção primária [...] fase de retomada, a gente vai ter que voltar para 2017. Para realinhar aquilo que a gente perdeu nos quatro anos de gestão anterior, que eu acho que talvez tenha sido mais danosa que, inclusive, a pandemia, dentro do nosso território" (MFC Marcio).
Essa gestão inadequada levou a uma falta de confiança no sistema e a uma redução significativa nos salários dos profissionais, como observado pelas enfermeiras da AP 5.1 e 3.3. A interrupção dos contratos em fevereiro de 2020 agravou a situação, deixando as CF sem muitos de seus técnicos e médicos experientes. Com a chegada da pandemia, a fragilidade do sistema de saúde se tornou ainda mais evidente. A desorganização administrativa durante a transição de contratos e a redução de salários dificultaram a reposição de equipes e a retomada dos serviços essenciais. O resultado foi uma preparação insuficiente para enfrentar a crise, impactando a capacidade de resposta às demandas emergentes e colocando em risco a saúde de profissionais e pacientes.
"[Em fevereiro de 2020, o Prefeito Crivella encerrou os contratos.] Exatamente! Eu voltei a ganhar o que eu ganhava em 2011 quando eu comecei na Estratégia. Depois de quase dez anos depois, você voltar a ganhar um salário lá de trás, tendo todas as responsabilidades financeiras que você tem hoje, isso é uma agressão sem tamanho e acabou, acabou com as clínicas da família, quase nenhum médico mais ficou nesse cenário. Isso pré pandemia. Isso daí já afetou a gente de uma maneira bizarra. Isso daí já preparou para a desgraça que vinha a seguir. [...] Até repor a equipe demorou uns bons meses. Perdi todos meus técnicos de enfermagem e já eram antigos na casa, recebi uma equipe toda nova, só técnicos recém-formados, sem experiência, ninguém entendia de vacina, ninguém entendia de nada" (ENF Débora).
Durante a pandemia, a gestão pública enfrentou críticas severas por sua abordagem desorganizada e politicamente motivada. Uma MFC da AP 2.1 destacou a falta de planejamento na compra de vacinas e a promoção de medicamentos sem eficácia comprovada, criando desinformação e medo na população. A má gestão resultou em uma resposta tardia e inadequada, comprometendo a eficácia das campanhas de vacinação e a confiança nas medidas de saúde pública.
Casos de corrupção, como a compra de equipamentos a preços inflacionados para ganho pessoal, foram citados como exemplos de como a crise foi explorada para enriquecimento, em detrimento da saúde pública. A exploração do sofrimento e da vulnerabilidade dos pacientes e profissionais foi um dos aspectos mais tristes da pandemia, exacerbando a sensação de injustiça social.
"É difícil não falar que a gente tinha disponibilidade de vacina muito tempo antes e não foi feita a compra. Foi feita divulgação de medicações que não funcionam como se funcionassem. Então, as pessoas com medo e ouvindo uma pessoa que elas acreditavam, por mais que essa pessoa não tivesse embasamento científico nenhum. [...] o que a gente viveu aqui muito foi por uma questão política muito mal organizada, muito mal estruturada. O nosso calendário de vacina, que sempre foi motivo de orgulho, não foi atualizado a tempo. Quantas pessoas não teriam morrido se as vacinas tivessem sido compradas? [...] Fora as questões de oportunismo de políticos comprando aparelhos muito mais caros do que deveriam para poder roubar um pouco em cima disso. Então, ver que pessoas se aproveitaram desse sofrimento para enriquecer, foi muito triste. A gente viu os nossos pacientes, os nossos familiares, a gente adoecendo, colegas morrendo e, enquanto isso, pessoas enriquecendo a essas custas. Foi triste" (MFC Clara Antunes).
Apesar dos desafios, a pandemia também destacou a importância do Sistema Único de Saúde. Uma enfermeira da AP 2.2 observou um aumento na valorização do SUS, com muitas pessoas que anteriormente dependiam de serviços privados recorrendo ao sistema público pela primeira vez. Os sentimentos da população foram manifestados em protestos criativos durante a vacinação, utilizando simbolismos como jacarés e placas para expressar suas críticas ao governo e sua valorização do SUS. As citações políticas e o clima de polarização são recordados principalmente durante as experiências nas salas de vacinas, em que foram observadas demonstrações pelos usuários. Vacinar tornou-se sinônimo de ato político.
“Vou tomar a vacina e virar jacaré” era uma coisa que era muito citada e as pessoas também começaram a colocar um pingo de ironia nisso também. A pessoa ia vacinar e tava às vezes com blusa da cuca. Tava com algum broche do jacaré sendo vacinado. [...] trazia plaquinha, “fulano não sei o quê genocida”. Trouxeram muita questão de valorização do SUS também [...] Muita gente até que vinha e estava acostumada com serviço privado até para as outras vacinas, que a gente faz de rotina, teve que acessar o SUS pela primeira vez. Então acho que deu uma valorização para o sistema de saúde que a gente tem público aqui no Brasil. [...] “essa vacina é pelo meu filho” e citava o nome do político como genocida" (ENF Bruna Saldanha).
A pandemia também revelou a importância crítica de uma comunicação clara e baseada em evidências. ENF Luciana e ACS Rebeka observaram que a disseminação de informações confusas e tardias, incluindo fake news, contribuiu para a desorganização e o pânico. A falta de orientação adequada levou muitas pessoas a recorrerem a tratamentos ineficazes e a comportamentos desesperados, como o consumo indiscriminado de medicamentos sem prescrição. A crise destacou a necessidade de fortalecer os canais de comunicação e garantir que informações confiáveis e cientificamente embasadas sejam acessíveis tanto para profissionais quanto para o público. A educação contínua e campanhas de conscientização são essenciais para combater a desinformação e promover práticas de saúde seguras e eficazes.
"Acho que a nossa política é complicada. Acho que não é passada informação correta para a gente, tanto profissional como usuários, pacientes, na televisão e tudo mais. Às vezes é tudo muito confuso, acho que essa confusão toda, até de fake news e tudo mais, é que as informações são muito tardias" (ENF Luciana).
"Acho que deveria ser uma coisa mais bem organizada, para que as pessoas não saíssem iguais umas loucas tomando um monte de remédio, comprando remédios, desesperadas, arrumando um monte de coisa para tomar sem saber ao certo" (ACS Rebeka).
A importância e necessidade urgente de valorização dos profissionais de enfermagem também foi ressaltada por uma enfermeira atuante na zona sul do Rio de Janeiro. Os profissionais da enfermagem, entre enfermeiros e técnicos, compõem a principal força de trabalho dos postos de vacinação, sendo os responsáveis por toda organização destes locais, assim como dos locais de testagem, na execução da coleta dos materiais. Enquanto profissionais de saúde foram saudados como heróis durante os picos da pandemia, foi apontado que essa valorização foi temporária. A categoria, especialmente os técnicos de enfermagem, continua a ser desvalorizada socialmente, apesar de seu papel crucial na gestão da pandemia. A falta de reconhecimento, refletida em salários baixos e condições de trabalho precárias, permanece uma questão presente.
"A minha categoria profissional é uma categoria que é socialmente desvalorizada. [...] É uma categoria profissional, principalmente dos técnicos de enfermagem, que são pessoas que trabalharam comigo em parceria durante todo o processo da campanha de vacinação, do processo de trabalho de cuidado dos doentes, dos sintomáticos respiratórios durante o período mais crítico da pandemia, que antigamente já era muito desvalorizado e que, apesar das palmas da população chamando a gente de herói, enquanto profissional de saúde, em determinado período da pandemia, caiu-se por terra novamente" (ENF Katia Brito).
"Sim, sim, eu acho que mudou, sim, as pessoas mudaram o conceito em relação à vacina, porque antes não tinha questionamento. Ah, tem que tomar vacina. Eu ia lá, dava a vacina, ia com a carteirinha, não ficava perguntando o que era, agora tudo é pergunta de tudo, agora no trabalho eu percebo isso, que tem uma certa resistência à vacina, não só do Covid, mas das outras. Parece que as pessoas estão mais resistentes a tomar as vacinas, os encontros. Eu acho que foram as informações que chegam, as fake news deixam as pessoas confusas" (ACS Karen Caroline).
Os anos que antecederam e durante a pandemia de Covid-19 evidenciaram falhas estruturais e de gestão que comprometeram a eficácia da resposta à crise. A desvalorização dos profissionais de saúde, a desorganização administrativa e a disseminação de informações falsas contribuíram para um cenário caótico e prejudicial à saúde pública. No entanto, a resiliência dos profissionais e a valorização nos últimos anos do SUS pela população apontam para a necessidade de reforçar o sistema de saúde pública e promover uma gestão transparente e bem embasada cientificamente, capaz de enfrentar futuras crises com maior eficácia e equidade.